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Três vezesNando Reis

Em longo papo com a Revista, o artista fala sobre seu ousado lançamento triplo de inéditas e repassa uma carreira marcada por acasos — e talento

por_Eduardo Fradkin do_Rio

Em longo papo com a Revista, o artista fala sobre seu ousado lançamento triplo de inéditas e repassa uma carreira marcada por acasos — e talento

por_Eduardo Fradkin do_Rio

O nome anunciado na videochamada — José Fernando — causa um pouco de estranhamento, mas o inconfundível rosto de Nando Reis logo surge na tela para falar sobre a sua carreira e o seu novo disco triplo. Os álbuns "Uma", "Estrela" e "Misteriosa" — cujas 24 faixas foram chegando aos poucos às plataformas de streaming até o lançamento integral em 6 de setembro — também ganharam edições em vinil e um box (vendido por R$ 590 no site do artista) que inclui um disco bônus, "Revelará o Segredo", com seis faixas.

Ele explica que o trabalho "é um apanhado, às vezes, parece até uma antologia, de composições minhas de diferentes períodos" e começa pelas duas mais antigas, gestadas em 2015.

"O Muro' é uma música para a qual eu escrevi a letra. É uma de quatro canções dentro do disco que não é uma autoria exclusiva minha. Ela veio, junto com 'Estuário', do Barrett (Martin, produtor do disco e baterista do extinto Screaming Trees), por conta um projeto que ele tinha chamado Levee Walkers, no qual enviava composições para diferentes artistas, de línguas distintas, para que fizessem a melodia e a letra e, eventualmente, gravassem", diz Nando.

O supergrupo Levee Walkers foi formado por Barrett com o guitarrista Mike McCready (do Pearl Jam) e o baixista Duff McKagan (Guns N' Roses). Na época, o baterista e produtor americano-que já trabalhou em outros quatro discos da carreira solo de Nando: "Para quando o arco-íris encontrar o pote de ouro" (2000), "Infernal" (2001), "A letra A" (2003) e "Jardim-Pomar" (2016) - declarou que buscara pessoas que cantassem em espanhol e em português do Brasil. A banda lançou EPs com participações do americano Ayron Jones, do inglês Jaz Coleman e da porto-riquenha Raquel Sofia. No entanto, as duas faixas de Nando haviam ficado engavetadas... até agora.

É uma canção alegre, com metais que urdem uma atmosfera dançante. Não por acaso, Nando revela que o seu título original era "James Brown". Outra curiosidade é que ela tem duas baterias, tocadas por Barrett Martin e por Matt Cameron, do Pearl Jam.

"Essa gravação teve um momento presencial (em São Paulo), mas também teve overdubs, que foram feitos em Seattle. Nesse vai e volta da canção, na hora que eu fui gravar a voz, tinha um problema de formato, e eu acabei tendo que editar a letra. As circunstâncias que determinam o resultado final são coisas sobre as quais não se tem controle", reflete Nando, que cita, outras vezes durante a conversa, a importância do acaso em sua vida.

Os overdubs, enfatiza Nando, não devem ser confundidos com samples: "Houve etapas da feitura do disco que foram feitas de forma distante. Mas o Barrett sempre esteve nas gravações, mesmo as adicionais feitas em Seattle, nas quais eu não estava. Na mixagem, eu estive presente. As seis faixas do disco bônus foram gravadas com músicos de lá, e quatro deles eu não conhecia. Foram arregimentados pelo Barrett", conta o baixista, guitarrista e cantor brasileiro.

EM TERCEIRA PESSOA

Outra faixa que rende assunto é "Ginger e Red": seria ela um "Eduardo e Mônica" da carreira de Nando? Ele sorri.

"É muito incomum no meu repertório, na minha forma de compor, eu contar histórias, como faço nessa música. Em geral, escrevo na primeira pessoa. De fato, ali tem uma coisa análoga (a "Eduardo e Mônica"), até musicalmente. Esse disco, no meu entender, explora áreas e sonoridades distintas. Tem um espírito aventureiro, de experimentação, de liberdade, de alegria. É diferente de uma coisa rígida, feita com prazo e com um certo orçamento. Olhando retrospectivamente a minha própria discografia, são coisas imponderáveis que distinguem discos que fluem dessa maneira leve de outros discos que são mais tensos", diz ele.

É muito incomum no meu repertório, na minha forma de compor, eu contar histórias. Geralmente, escrevo na primeira pessoa.

Por fim, é impossível não perguntar sobre a música "Macapá", já que a turnê do disco começa justamente pela capital do Amapá, no dia 20 de setembro.

"Eu escrevi a canção em Macapá, chegando de Belém depois de um show. Era uma canção para o disco da Marcia Castro, que o Marcus Preto produziu. Eu estava disposto a fazer uma música para ela. E usei uma ideia que estava perdida no celular. Escrevi a canção em uma tarde, no hotel. As coisas surgem assim, de forma inesperada, casual. Fiquei tão satisfeito, porque me pareceu uma canção 'redonda', que eu apresentei no mesmo dia, no bis do show que fiz à noite. É uma coisa que eu nunca tinha feito na vida, até porque é difícil memorizar uma música rapidamente assim", recorda-se o músico.

No início da carreira solo, em foto sem data: "Primordialmente, havia o desejo de poder gravar as minhas coisas", relembra
No início da carreira solo, em foto sem data: "Primordialmente, havia o desejo de poder gravar as minhas coisas", relembra

PASSEIO PELO PAÍS

Depois de Macapá, outras capitais na Região Norte, como Manaus e Belém, terão a chance de ver os primeiros shows da turnê. "Há um desejo, por parte do nosso escritório, de fazer uma turnê descentralizada. Macapá, por ser distante de São Paulo, é um lugar aonde não vou com frequência. E, sempre que vou, os shows são muito bem recebidos, com muito envolvimento do público. E Macapá tem uma coisa incrível: ali passa a linha do Equador, e tem um campo de futebol cuja linha do meio de campo divide o Hemisfério Norte do Sul", comenta Nando.

Quem supõe que Nando daria um bom guia turístico, indicando atrações inusitadas como campos de futebol divisores do planeta, se decepcionaria. Ele lamenta que as viagens a trabalho não permitem muitas explorações locais. Mas, depois de pensar um pouco, aponta dois lugares que o deslumbraram no Brasil: o Lajedo de Pai Mateus, no interior da Paraíba, e a Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso. Neste último, ele passeou durante a turnê de "Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas" (1987), dos Titãs. Ainda se lembra do Mirante do Centro Geodésico da América do Sul e de ter procurado, em vão, um cartão postal para levar para casa: "não havia exploração do turismo lá".

Fora do Brasil, a cidade com a qual Nando tem uma ligação mais forte é Seattle, nos Estados Unidos.

"Minha relação com Seattle teve início em 1999, com o disco 'As Dez Mais', dos Titãs. Fomos gravar lá, por conta do Jack Endino (nome por trás de discos seminais do movimento grunge), que já havia produzido 'Domingo' (1995) e 'Titanomaquia' (1993), e com quem criamos uma relação", argumenta ele, que se encantou com a cidade e com Jack, a quem convidou para produzir seu segundo disco solo, "Para Quando o Arco-Íris Encontrar o Pote de Ouro" (2000).

Desde então, Nando retornou a Seattle "inúmeras vezes", em suas próprias palavras. Um dos motivos, explica ele, é "uma predileção por gravar longe de casa". Ele prossegue:

"Eu tinha filhos pequenos, e a vida cotidiana caseira consome muito. Ir a lugares distantes me permite uma concentração maior", alega o pai de cinco filhos.

Curiosamente, Nando tem exatamente quatro irmãos. Freud explica?

"Nem 30 anos de psicanálise poderão responder o que eu reproduzo a partir de um modelo (dos pais) e o que é mera coincidência. Eu não sou um sujeito preso a modelos. É importante frisar isso, porque há uma ideia muito em voga, hoje em dia, de que família está dentro de uma caixinha, com papai, mamãe e filhos. A própria música 'Família' (dos Titãs) ironiza essa ideia", ressalva o músico.

BANDA FIEL

A turnê que (os Titãs) fizemos no ano passado calcificou algumas ranhuras que haviam ficado abertas. Uma ruptura deixa certas mágoas, e isso foi completamente superado.

Pelo menos dois filhos de Nando trabalham com música. O primogênito, Theodoro, é professor de musicalização infantil. O outro é Sebastião, que toca na banda do pai e em uma própria, chamada Colomy. Em Seattle, Nando conheceu outro membro de longa data de seu grupo, o tecladista Alex Veley, com quem toca desde o ano 2000, e o próprio Barrett Martin, novamente convocado para a produção em "Uma Estrela Misteriosa".

"Gosto de trabalhar com pessoas com quem me dou bem, com quem me identifico. Por isso tenho a mesma banda há muito. tempo", justifica Nando, que também contou com o guitarrista Peter Buck, do R.E.M., nas sessões de gravação, em São Paulo, do novo disco.

Apesar da aversão a rupturas, ele teve de tomar a difícil decisão, em 2002, de sair dos Titãs. No podcast "Lugar de Sonho", falou detalhadamente sobre esse episódio. Em discos como "Titanomaquia", de 1993, nenhuma ideia proposta por Nando foi aproveitada. Dois anos depois, ele lançou seu primeiro álbum solo, "12 de Janeiro" (batizado com a data de seu aniversário), que trouxe o hit "Me Diga". A música fez mais sucesso do que as de "Titanomaquia", gerando mal-estar na banda que era o principal ganha-pão do artista.

As mortes do guitarrista dos Titãs Marcelo Frommer, atropelado em junho de 2001, e de Cássia Eller, amiga próxima de Nando, em dezembro do mesmo ano, foram determinantes para a sua saída da banda que o consagrara. As duas fatalidades o fizeram concluir que "nada é garantido na vida" e que precisava dar um passo ambicioso enquanto podia. No papo com a Revista UBC, ele rememora o assunto:

"As frustrações nos impelem a tentar realizar algo. A frustração é inerente a um trabalho conjunto, especialmente numa banda como os Titãs, com muitos cantores, muitos compositores. É natural que uma parte das suas ideias não coincida com as da maioria."

Ele enumera os seus motivos: "primordialmente, havia o desejo de poder gravar as minhas coisas. Eu estava, naquele momento, muito confiante com as composições que não eram absorvidas pela banda, por diferença de gosto ou por uma questão de quantidade mesmo. E houve razões de ordem pessoal. A morte do Marcelo e a da Cássia tiveram impacto muito grande. Eu já vinha lançando discos solo e convivia com a frustração de não poder me dedicar (a eles), de não ter agenda para divulgá-los, para tocar as músicas. Eu tinha 40 anos e percebi que era o momento de fazer a ruptura", explica Nando, acrescentando que qualquer ressentimento ainda existente foi dissipado em 2023: "A turnê que fizemos no ano passado foi muito boa, porque calcificou algumas ranhuras que haviam ficado abertas. Uma ruptura deixa certas mágoas, e isso foi completamente superado."

ÀS VÉSPERAS DA FASE SOLO

Biógrafa dos Titãs, a jornalista Hérica Marmo lembra que teve um presságio da saída de Nando quando foi ao show de estreia do álbum "Infernal", lançado em 2001.

"Foi catártico. O Canecão (mítica casa de shows do Rio, tema de reportagem na página 9) lotado veio abaixo, com todo mundo cantando as composições dele que ficaram famosas nas vozes de outros artistas", conta ela, que, dias depois, esteve na casa do músico, em São Paulo, para pegar uma coleção de sete pastas, organizada pela mãe dele, com recortes de tudo que fora publicado sobre os Titãs nos primeiros anos da banda. "Ele quis saber, entusiasmado, se eu havia gostado daquele show. Eu disse que gostei tanto que estava preocupada. E ele confessou o que ficava cada vez mais claro à medida que a sua carreira solo ganhava força: 'estou num impasse'. Quatro meses depois, Nando Reis faria a sua última apresentação como membro dos Titãs."

Além de Cássia Eller, muitos outros cantores, de Marisa Monte a Samuel Rosa, emplacaram sucessos compostos por Nando ou tiveram a oportunidade de fazer shows em parceria com ele, como nos casos recentes de Pitty e Duda Beat. A última gravou com Nando um EP de seis faixas, a partir de um show no Circo Voador, em plena pandemia de Covid-19.

Um motivo de orgulho para a cantora é ter registrado a música "E.C.T.", que só havia sido gravada por Cássia Eller, de quem também é fã. "Eu escuto o Nando desde pequena. Adorava as músicas dele interpretadas por outros artistas, como a Cassia Eller, ou tocadas por ele mesmo nos Titãs. Quando o conheci, falei: 'você é meu mais novo amigo de infância'. Ele é um dos maiores compositores do Brasil, e também é uma pessoa muito generosa e atenciosa", define Duda Beat, que arrancou gargalhadas do ídolo, durante os ensaios, ao tentar tirar uma dúvida sobre a letra de "Por Onde Andei": "Eu embaralhei a letra na minha cabeça e achei que dizia que roubaram um carro com uma criança dentro."

Considerado um 'hitmaker', Nando diz não ter uma fórmula para criar boas músicas, mas garante ter um método fixo de trabalho.

"Eu tive uma série de músicas que fizeram sucesso, mas não posso cair no conto do vigário de me repetir e perseguir algo que eu nunca irei alcançar, porque não depende de mim. O que depende de mim é o controle de qualidade, um rigor crítico sobre o trabalho que produzo como compositor e intérprete. No fim das contas, o que agrada é uma boa melodia, uma boa letra, e é disso que eu cuido. E eu me atenho a um modelo que nunca mudou, na hora de compor".

Ele conta que, mesmo quando atuava como baixista nos Titãs, usava outro instrumento para compor. "Eu componho no violão. As duas únicas que eu fiz no baixo são 'Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas' e 'Diversão', para a qual Sérgio Brito escreveu a letra. Eu componho ao violão, com papel e caneta, desde sempre. Ah, e um gravador. Sempre andei com um gravador para cima e para baixo, e, agora, tem a facilidade de estar embutido no smartphone", diz ele. "Há canções que parecem que caem do céu; outras são trabalhadas exaustivamente. Nem tudo que eu faço dá certo, no sentido de virar hit, e, por outro lado, a minha grande busca não é por esse sucesso. É por uma coisa muito maior, a minha satisfação com a realização das minhas expectativas."

Algumas paixões de infância perduram na vida do músico. Uma delas é o futebol — torcedor do São Paulo, ele já escreveu colunas em jornais sobre o tema. Outra é Vânia, mãe de quatro dos seus cinco filhos, e com quem é casado. Ele a conheceu no mesmo lugar onde nasceram os Titãs, o Colégio Equipe, na capital paulista. "Só tenho boas lembranças desse colégio. Curiosamente, eu não era um bom aluno de matemática e, justamente por isso, fui fazer faculdade de Matemática, achando, com certa presunção adolescente, que a vida era um álbum de figurinhas que eu ia preencher." Se, nas ciências exatas, o álbum ficou por fazer, nas artes, houve figurinhas de sobra para os seus próprios álbuns e os de vários coleguinhas.

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