por_Eduardo Fradkin • do_Rio
Fechado e degradado desde 2010, quando teve o seu terreno retomado na Justiça pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Canecão passa por um renascimento. Este ano, o consórcio Bonus-Klefer, vencedor da licitação para assumir o espaço por três décadas, deu início às obras de reconstrução da casa de shows carioca que foi o cenário de capítulos fundamentais da música brasileira. A previsão de reabertura é no primeiro trimestre de 2026. Mas, antes disso, será possível matar saudades. O diretor e roteirista Bruno Levinson está rodando o documentário "Canecão, tantas emoções" — viabilizado pelo canal Curta! com verbas do Fundo Setorial do Audiovisual —, que ficará pronto no ano que vem. No início de agosto, Bruno deu uma palinha, ao exibir 15 minutos já editados do filme no cinema Estação Net Rio, durante o 2º Claro Festival Curta! Documentários.
Carlinhos de Jesus
O trecho exibido começa com o cantor Elymar Santos entrando no carro de Bruno para fazer o percurso da Ilha do Governador (Zona Norte do Rio) até o Canecão, em Botafogo (Zona Sul). Em novembro de 1985, ele fez essa mesma viagem, que mudaria a sua vida. Conhecido, na época, apenas por frequentadores de casas noturnas do subúrbio, Elymar teve a ideia de alugar por uma noite o Canecão, considerado um templo da MPB, inalcançável para artistas como ele.
"Ele colocou no prego o apartamento dele. E não queria que ninguém soubesse que o Canecão foi alugado. Queria que as pessoas achassem que ele havia sido convidado. Quem o convenceu a contar a história real foi a Léa Penteado, assessora de imprensa do Canecão. Ela conseguiu capas de jornais para o Elymar, graças a essa história. O show dele lotou, e o Canecão o convidou a fazer mais shows lá, sem precisar alugar a casa. Havia 25 anos que ele não se encontrava com a Léa Penteado. Fiz o trajeto de carro com ele da Ilha do Governador até o Canecão, e, quando ele chegou lá, teve a surpresa de encontrá-la. Foi lindo", conta Bruno.
Alcione
No filme, Elymar relembra como surgiu a inusitada ideia da locação:
"Eu estava fazendo um show em Pilares (...). Quando terminou, saí para falar com as pessoas que estavam ali. Aí, teve alguém que falou assim: 'Isto aqui está pequeno para você, hein? Qualquer dia, você está no Canecão!'. Eu fui para casa com essa coisa na cabeça.”
Para as gravações do documentário, o diretor e roteirista levou muitos outros artistas e ex-funcionários de volta ao Canecão, com o aval do empresário Luiz Oscar Niemeyer, sócio da Bonus-Klefer. Antes de o consórcio tomar as rédeas da casa, em 2023, Bruno fizera várias tentativas com a UFRJ para filmar dentro da propriedade da universidade, sem sucesso.
Uma das artistas convidadas ao local foi Alcione, e sua visita rendeu uma cena memorável para o filme.
"Quando ela entrou, eu notei que estava muito emocionada. Ela se sentou para dar a entrevista e ficou quieta por um tempo, só olhando o (interior do) Canecão. Eu deixei a câmera ligada. De repente, ela falou: 'Nossa, eu vi o show da Maysa aqui'. A Alcione era uma cantora da noite, cantava em boates e casas de show. E, antes dos shows principais no Canecão, havia a Banda do Canecão, que era a atração de abertura. Naquela noite da Maysa, ela foi crooner da Banda do Canecão. Depois de contar isso, no silêncio daquele espaço vazio, ela começou a cantar, à capela, "Meu Mundo Caiu", um grande sucesso da Maysa. Eu chorei de emoção nesse momento", revela Bruno.
O show de Maysa, em 1969, foi um divisor de águas na história daquela casa, inaugurada dois anos antes como uma cervejaria. Foi a partir daí que o empreendimento começou a se firmar como "templo sagrado da MPB", como define Lobão no documentário. Num santuário como aquele os hereges do rock nacional não sonhavam pisar, até que uma irreverente banda operou tal milagre.
Para rememorar essa história, Bruno reuniu no palco vários representantes da geração 80 do BRock, como Frejat, Evandro Mesquita, Lobão, Leoni, Leo Jaime e Bruno Gouveia, cantor do Biquini Cavadão. Enquanto quase todos eles estavam, naquela época, a muitos passos do paraíso, Evandro e seus colegas da Blitz chegaram lá. "Eu queria muito fazer o Canecão, por essa impossibilidade do acesso de uma música mais da gente chegar aqui. Era só Chico, Caetano, Gil, Bethânia", lembra Evandro.
Alceu Valença
Segundo a cantora Fernanda Abreu, todos na banda sonhavam com aquilo, até que veio a grande chance. "Quando pintou o convite para a gente tocar aqui, que foi no segundo disco, 'Radioatividade', foi um negócio... a Blitz estava estourada num grau que fazia fila em volta do Canecão."
O guitarrista Tony Bellotto, do Titãs, estava no meio do público num daqueles dias de rock no Canecão. "A Blitz já estava fazendo sucesso, e a gente (Titãs) estava tentando entrar. Conquistar o Rio de Janeiro era uma meta fundamental para quem quisesse fazer sucesso no Brasil inteiro. E, para conquistar o Rio de Janeiro, era preciso conquistar o Canecão", opina Tony.
Os colegas de outras bandas confirmam o pioneirismo da Blitz. "Demorou muito tempo para a geração da gente chegar no Canecão. A gente (Barão Vermelho) já estava estourado, mas não entrava aqui. A Blitz foi quem abriu a porta", afirma Frejat.
Evandro conta que até Dorival Caymmi foi ver o show de sua banda. Lobão, então, lembra uma ocasião em que foi escalado para tocar antes de Baden Powell no Canecão. Na coxia, o roqueiro encontrou o exímio violonista e declarou: "Poxa, você me influenciou muito!". A reação de Baden foi de estupefação: "Mas como isso é possível?!", relata Lobão, para risadas gerais dos colegas.
As revelações curiosas vão se enfileirando no filme, e Leo Jaime comenta que a primeira vez que viu uma de suas músicas ser tocada ao vivo foi num show de Ney Matogrosso no Canecão. Já Leoni confessa o medo que tinha daquele lugar: "No primeiro show da minha carreira solo que eu fiz aqui, eu estava em desespero. Achava que não ia ter ninguém.” Mãe de Cazuza, Lucinha Araujo faz uma confissão sobre um show que a marcou: "Eu sabia que era a última vez que eu ia ver o meu filho brilhando no palco, porque estava perto do fim.”
UMA PRIMEIRA VEZ ESPECIAL
O diretor e roteirista do filme, naturalmente, também tem uma conexão emocional com a casa de shows. Quando tinha cerca de 10 anos e se divertia imitando Roberto Carlos com uma vassoura diante do espelho, a mãe o levou para ver o ídolo no Canecão. Foi o primeiro show de sua vida. "Eu fiquei maravilhado. De certa forma, aquela emoção foi o que determinou meu futuro, meu caminho profissional", conta Bruno, que hoje tem 56 anos.
O mundo deu voltas, e Bruno passou sete anos fazendo o roteiro do especial de fim de ano de Roberto Carlos na TV Globo: "Ele virou um amigo", diz. Também teve a chance de produzir um show no seu amado Canecão. Foi o encerramento do festival Humaitá Pra Peixe, de 2005, com Planet Hemp, Bangalafumenga e China. Porém, mais do que a ligação afetiva, foi um impulso jornalístico que o motivou a iniciar o documentário:
"O Canecão tem uma importância fundamental na música brasileira, e eu defendo a tese de que uma das importâncias do Canecão é ter sido um ponto de encontro de artistas, público, jornalistas... a cena se encontrava no Canecão, e isso foi fundamental para a história da música popular brasileira. Foi isso que me motivou a dirigir esse filme", explica.
UMA IDEIA QUE MARCOU A MÚSICA
No filme, Elymar relembra como surgiu a inusitada ideia da locação:
"Eu estava fazendo um show em Pilares (...). Quando terminou, saí para falar com as pessoas que estavam ali. Aí, teve alguém que falou assim: 'Isto aqui está pequeno para você, hein? Qualquer dia, você está no Canecão!'. Eu fui para casa com essa coisa na cabeça.”
Quando pintou o convite para a gente tocar aqui, que foi no segundo disco, 'Radioatividade', foi um negócio... a Blitz estava estourada num grau que fazia fila em volta do Canecão. ”
Fernanda AbreuPara as gravações do documentário, o diretor e roteirista levou muitos outros artistas e ex-funcionários de volta ao Canecão, com o aval do empresário Luiz Oscar Niemeyer, sócio da Bonus-Klefer. Antes de o consórcio tomar as rédeas da casa, em 2023, Bruno fizera várias tentativas com a UFRJ para filmar dentro da propriedade da universidade, sem sucesso.
Uma das artistas convidadas ao local foi Alcione, e sua visita rendeu uma cena memorável para o filme.
"Quando ela entrou, eu notei que estava muito emocionada. Ela se sentou para dar a entrevista e ficou quieta por um tempo, só olhando o (interior do) Canecão. Eu deixei a câmera ligada. De repente, ela falou: 'Nossa, eu vi o show da Maysa aqui'. A Alcione era uma cantora da noite, cantava em boates e casas de show. E, antes dos shows principais no Canecão, havia a Banda do Canecão, que era a atração de abertura. Naquela noite da Maysa, ela foi crooner da Banda do Canecão. Depois de contar isso, no silêncio daquele espaço vazio, ela começou a cantar, à capela, "Meu Mundo Caiu", um grande sucesso da Maysa. Eu chorei de emoção nesse momento", revela Bruno.
O show de Maysa, em 1969, foi um divisor de águas na história daquela casa, inaugurada dois anos antes como uma cervejaria. Foi a partir daí que o empreendimento começou a se firmar como "templo sagrado da MPB", como define Lobão no documentário. Num santuário como aquele os hereges do rock nacional não sonhavam pisar, até que uma irreverente banda operou tal milagre.
D2, o diretor Bruno Levinson e Fernanda Abreu
MEMÓRIAS DA GERAÇÃO 80
Para rememorar essa história, Bruno reuniu no palco vários representantes da geração 80 do BRock, como Frejat, Evandro Mesquita, Lobão, Leoni, Leo Jaime e Bruno Gouveia, cantor do Biquini Cavadão. Enquanto quase todos eles estavam, naquela época, a muitos passos do paraíso, Evandro e seus colegas da Blitz chegaram lá. "Eu queria muito fazer o Canecão, por essa impossibilidade do acesso de uma música mais da gente chegar aqui. Era só Chico, Caetano, Gil, Bethânia", lembra Evandro.
Segundo a cantora Fernanda Abreu, todos na banda sonhavam com aquilo, até que veio a grande chance." •