por_Giovana Braga • de_São Luís
Pabllo Vittar, Enme Paixão, Fuega, Os Tropix, Frimes, Fabrícia, Sfanio, Mix in Brazil, Flávia Bittencourt, Criola Beat, Nubia. É longa — e vai muito além de todos estes grandes artistas — a lista de talentos que vêm surgindo em São Luís na última década. Algo especial acontece na capital maranhense, uma cena que busca traduzir e multiplicar a identidade local numa porção de gêneros.
Os Tropix: um dos projetos mais estourados, hoje, na cidade
A riqueza e a variedade são tantas que alguns já comparam a São Luís de 2024 à de 1972, quando o mítico Laborarte, movimento independente das mais diversas artes — música, dança, teatro —, ajudou a construir e sedimentar uma estética verdadeiramente maranhense. Uma ideia que esta turma contemporânea abraça e leva a outros territórios.
ARTISTA QUILOMBOLA
Com influências dos batuques do boi, do tambor, dos blocos afros e, claro, do reggae, gênero tão forte no Maranhão, Enme Paixão é um exemplo da nova geração que quebra paradigmas. Cantora, compositora e rapper queer, natural do Quilombo Urbano Liberdade em São Luís, ela iniciou sua carreira em 2014 e, já em 2017, estreou nas plataformas digitais no Top Virais do Spotify. Cravou de cara seu nome como um dos mais promissores do novo pop maranhense.
Enme Paixão: "A música maranhense nunca esteve tão vibrante quanto hoje"
“A música maranhense nunca esteve tão vibrante quanto hoje, e muito disso se dá porque artistas da periferia entraram no game e mostraram de onde vêm as referências reais”, sentencia.
Ultrapassando as barreiras de regionalidade, sexualidade e raça, ela conta que a mistura de som produzida na capital do estado tem ganhado força no Brasil todo: “Logo estaremos falando de um movimento que mudou o eixo comercial e forjou novas gerações. Isso já está acontecendo neste momento, mas daqui a 10 anos poderemos colher os frutos.”
Em 2017, Enme lançou sua primeira música autoral com DJ Brunoso e Frimes, fazendo uma homenagem ao Revis, espaço de acolhimento à comunidade LGBTQIAP+. Ao lado de outras artistas locais, como Only Fuego (também conhecida como Fuega), criaram o Grupo Queer, ganhando destaque na cena local e no pop nacional. Juntas, elas arrastam multidões em seus shows.
Desde o primeiro show nós já nos sentimos muito abraçados pelas pessoas.”
Gabriel, Os TropixFuega, que também é um nome promissor do cenário local, conta que se iniciou como DJ tocando nas noites de São Luís e, entre um set e outro, passou a cantar. Seu sonho, desde sempre, era soltar sua voz. “Começar a carreira aqui em São Luís foi bem complicado, porque na época não existia uma cena pop atuante na cidade, principalmente quando se tratava de artistas LGBTQIAPN+”, comenta.
Inquieta desde pequena, começou a dar vida às suas composições mesmo sem incentivo de nenhum tipo.
“As dificuldades vieram logo de cara porque, como era uma coisa nova, a gente não sabia como lidar com várias questões. Só as manifestações culturais já conhecidas tinham vez”, afirma a artista, que, em suas canções, mistura reggae, pop e outros gêneros de maneira cativante.
A edição de 2022 promoveu a dobradinha marcante de Ivete Sangalo com o tradicional Boi de Lágrimas, do São João do Maranhão, juntamente com a artista local Fabrícia. Já nesta edição de 2024, o encontro de Bumba-Meu-Boi, boi do Maranhão e Boi Bumbá, do Amazonas, criou um emblemático eixo junino Norte-Nordeste.
ESTOURO EM UM ANO
Os Tropix, banda ludovicense formada há só um ano por Leonardo Lucena, Gabriel Ferreira, Lucas Leal, Vik Nobre e Gabriel Leandro, também já virou uma febre na cidade.
“O público maranhense é muito fervoroso e apaixonado por música, o que facilita muito na construção da carreira com o nosso público de modo bem natural. Na contramão, a recorrente baixa de investimento em políticas públicas voltadas à cultura sempre foi uma grande dificuldade para o setor”, diz Gabriel.
Com carreiras anteriores à banda em gêneros distintos, eles contam que sempre foram apaixonados pela música popular maranhense e brasileira. E que querem apresentar um som que busque refletir a pluralidade estética que sempre viveram.
“O início de um artista independente sempre é repleto de dificuldades, por ter que contar com seus próprios recursos. Porém, mesmo diante destes empecilhos, Os Tropix têm um início de carreira bem animador. Desde o primeiro show nós já nos sentimos muito abraçados pelas pessoas. E o público só tem se multiplicado”, continua Gabriel.
Pabllo Vittar: inspiração e estrela nacional
PALCOS PARA TROCAS
A ascendente produção musical de São Luís também deve muito aos movimentos criados pelos festivais que aqui acontecem, com destaque ao Festival BR 135, que, além de palco, oferta oficinas, workshops, rodas de conversas. Uma série de encontros que proporcionam muitas trocas e desenvolvimento técnico, criativo e econômico — seja para os artistas, seja para todos aqueles envolvidos no campo da produção cultural.
Outro festival que também tem esse papel, e que movimenta o mercado musical de São Luís, é o São João da Thay, evento beneficente da influenciadora Thaynara OG, que promove e divulga a inserção da brasilidade regional do Maranhão, focada nas festas juninas. A edição 2024 teve um megashow de Pabllo Vittar, cria da cena ludovicense que alçou voos nacionais e se tornou uma estrela.
“No São João da Thay a gente promove o encontro de cantores locais com artistas consolidados da mídia nacional , gerando um networking artístico para ambos e divulgando nossa música e cultura da forma mais genuína possível. Em diferentes edições, já promovemos o encontro no palco da Glória Groove com a Enme Paixão ou do Léo Santana com a Flávia Bittencourt”, ela descreve.
A edição de 2022 promoveu a dobradinha marcante de Ivete Sangalo com o tradicional Boi de Lágrimas, do São João do Maranhão, juntamente com a artista local Fabrícia. Já nesta edição de 2024, o encontro de Bumba-Meu-Boi, boi do Maranhão e Boi Bumbá, do Amazonas, criou um emblemático eixo junino Norte-Nordeste.
Se, hoje, os festivais e a internet têm um papel central nos encontros e na difusão de novas estéticas surgidas no Maranhão, até a década de 1960 a cena musical em São Luís era dominada por influências do que era transmitido pelo rádio, cinema e televisão. As bandas e os artistas de maior destaque então se inspiravam na Jovem Guarda e na Bossa Nova que vinham do Rio e de São Paulo, além dos Beatles e outros ícones da música anglo-americana.
Fazendo diferente, o artista maranhense mais proeminente daquele tempo era João do Vale, que abordava temas do sertão nordestino, utilizando gêneros e ritmos musicais que já eram conhecidos a nível nacional, como baião, xote e samba. Outro nome de destaque foi Chico Maranhão, que, ao lado do coletivo Laborarte, teve uma compreensão mais aprofundada das mudanças estéticas, culturais e políticas que estavam ocorrendo no Maranhão naquele período.
Essas transformações influenciariam, na década seguinte, o surgimento de uma nova estética musical, que incorporaria elementos da cultura popular local e se transformaria na Música Popular Maranhense, uma espécie de gênero autônomo e pluralíssimo, que inclui nomes como Alcione, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro, Flávia Bitencourt e Bruno Batista.
Com uma forte resistência cultural e política, e também influências do Tropicalismo, a cena passou a incluir ritmos de bumba meu boi, divino, tambor de crioula e de mina. A arte popular buscava finalmente traduzir o povo, como forma de construir o seu próprio reconhecimento com ritmos até então vistos como matrizes culturais marginalizadas.
A CHEGADA DO REGGAE
As décadas de 80 e 90 foram um período de grande crescimento e vitalidade. O estado viu a repercussão de novos talentos, além do aumento de shows, festivais e programas de rádio. As gravações de discos se tornaram mais frequentes, e artistas locais tiveram a oportunidade de se conectar com cantores e compositores de renome nacional. Nesse contexto, São Luís experimentou, de novo, uma efervescência musical.
Essa efervescência também abrange a chegada do reggae ao estado. A tese mais popular conta que marinheiros atracavam no porto local e deixavam discos trazidos da Jamaica nos prostíbulos, como forma de pagamento pelos serviços prestados na década de 70. Outra origem conhecida conta que algumas pessoas conseguiam captar as ondas curtas das rádios caribenhas, devido à proximidade geográfica.
Começar a carreira aqui em São Luís foi bem complicado, porque na época não existia uma cena pop na cidade.”
FuegaDesde então, o reggae se difundiu pela periferia da cidade e passou a conquistar adeptos na área central, o que fez adquirir o título de Capital Nacional do Reggae — o território não jamaicano onde o ritmo mais faz sucesso. Hoje, mais de 50 anos depois, esse gênero se consagrou como um fenômeno de massa, manteve a sua relevância e se reinventou na cidade.
A ideia de que a música popular maranhense ainda é vista como secundária na cultura brasileira, longe dos principais meios de comunicação do eixo Rio-São Paulo, vem sendo desconstruída desde essa época até hoje, através de uma resistência artística e política na música, com pequenos passos e em diferentes ritmos — no pop, reggae, samba, rock.
Hoje, é evidente que a música em São Luís está passando por um momento vibrante, com uma diversidade de ritmos que incorporam elementos regionais e influências da indústria cultural nacional e internacional. E a prova é o surgimento de tantos e tão variadíssimos talentos que se disseminam graças à internet. Guarnicê*! •
*Termo essencialmente maranhense, provável corruptela de guarnecer, e que se utiliza como um chamado, no contexto do bumba meu boi do estado, para preparar-se para o novo para o que vem pela frente.