por_Kamille Viola • do_Rio
Nos anos 90, o enorme sucesso comercial do chamado pagode romântico era inversamente proporcional à recepção pela crítica, que acusava o gênero de ser puramente comercial. Mais de trinta anos depois, o estilo parece viver uma espécie de redenção. Para começar, a mídia especializada já não olha para ele de forma tão ferina. Além disso, a receptividade do público tem sido alta. Recentemente, grupos de sucesso da década de 90 fizeram turnês em espaços grandes, sempre lotados, com suas formações mais famosas — como o SPC, com seu vocalista clássico, Alexandre Pires, e o Soweto, com Belo. O projeto “Tardezinha”, de Thiaguinho (com repertório em boa parte noventista), que foi sucesso estrondoso entre 2015 e 2023, lotando estádios, vai crescer e terá turnê por cinco continentes em 2025, com apresentações em Brasil, Angola, Austrália, Estados Unidos e Portugal. Além disso, artistas de outros gêneros musicais, como Ludmilla, Gloria Groove e Léo Santana, lançaram trabalhos dedicados ao pagode romântico.
Suel: "É um ritmo muito brasileiro, que representa o nosso povo"
Para Karina S. Trindade, pesquisadora do pagode dos anos 90, a enxurrada de críticas que o ritmo sofreu no passado teve uma série de fatores envolvidos. Para começar, os artistas que faziam parte do movimento eram homens negros jovens e periféricos. “São meninos negros de origem pobre, que estão ocupando espaços que antes, em geral, eram negados às pessoas negras e pobres. Isso já vai gerar um primeiro incômodo nessa imprensa burguesa”, analisa ela. “Atrelada a isso, uma questão geracional: como são homens negros jovens, há uma ideia de ‘não têm noção ou consciência do que estão fazendo, de que estão descaracterizando o samba, colocando metais e teclado’”, explica.
Pagode é mais que música, é uma forma de expressão e de união da comunidade. As letras falam da realidade, do amor, da luta, do cotidiano das pessoas. ”
Além disso, a maioria desses artistas tinha aprendido a fazer música na igreja, em associações de bairro, na própria família ou em manifestações como as escolas de samba, por exemplo. “Isso também gera um desconforto muito grande nessa mídia especializada: ‘Como assim pessoas negras pobres, que nunca estudaram partitura ou grandes compositores de música clássica, ocupando espaço nobre, em rede nacional e ainda criando identificação com mais um monte de jovens nas periferias afora, falando de amor?’”, argumenta a pesquisadora.
VOLTA NOSTÁLGICA
Certamente contribuiu para essa boa fase de hoje do pagode romântico o fato de que a nostalgia tem grande força na sociedade. É natural, de tempos em tempos, revivermos modismos de uma certa época, e o intervalo de tempo para uma época voltar de forma saudosista tem ficado cada vez mais curto, no mundo acelerado de hoje. Mas, para Karina S. Trindade, esse está longe de ser o principal motivo para a ressignificação do gênero. Para ela, as políticas públicas de ingresso à universidade, que estão ajudando a trazer diversidade para a mídia especializada, foram primordiais para essa mudança na visão que se tinha sobre o ritmo.
“Quando o pagode surge, é tratado pela mídia especializada, por alguns intelectuais e por alguns artistas mais tradicionais da MPB não como um movimento de samba, mas como um estilo musical que vai ficar ali uns três anos e, depois, ninguém vai lembrar. Mas ele consegue se consolidar, com canções que a gente canta nas rodas de samba há mais de 30 anos, grupos com carreiras longas e artistas que saíram desses grupos e hoje são respeitados enquanto compositores e intérpretes” , exemplifica ela. “Esse acesso ao ensino superior de pessoas negras e periféricas que entendem a potência e a referência que foi o pagode romântico dentro das periferias brasileiras, porque são formadas por esse gênero também, vai trazer um outro olhar sobre esse esse estilo musical”, observa.
Um grande sucesso recente do ritmo é o projeto “Tardezinha”. Criada despretensiosamente em 2015 pelo cantor Thiaguinho e pelo ator Rafael Zulu, a festa se tornou um sucesso que lotou estádios Brasil afora. Pelo evento, passaram convidados do pagode e de outros ritmos, como Péricles, Iza, Rodriguinho, Alexandre Pires, Belo, Ferrugem, Ludmilla, Rael, Marcelo D2, Di Ferrero, Atitude 67 e Léo Santana. Só em 2023, ano em que se encerrou, o evento passou por 25 cidades espalhadas por todas as regiões do país, atraindo 800 mil pessoas. A “Tardezinha” rendeu quatro álbuns, licenciamento de produtos como roupas e cerveja, e uma série da Globoplay. Em 2025, Thiaguinho se expande internacionalmente, com os shows por 26 cidades de cinco continentes, e lança mais um disco, dedicado a sucessos dos anos 90.
Nascida na capital carioca e criada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a cantora Ludmilla é uma que entende bem a importância do gênero nas regiões periféricas. Com uma carreira bem-sucedida no funk (seu primeiro disco por uma gravadora, “Hoje”, é de 2014), em 2020 ela lançou o projeto “Numanice”, dedicado ao pagode romântico, tendo sido pioneira entre os artistas de outras sonoridades a abraçar o ritmo. O sucesso foi tanto que gerou um EP, um álbum de estúdio e três ao vivo, além de uma turnê que vem acontecendo desde 2021, com direito a shows em estádios como o Engenhão, no Rio de Janeiro.
Ludmilla (também no vídeo no alto da matéria): resgate do pagode em grande estilo no projeto Numanice
“Eu acho que o pagode é mais que música, é uma forma de expressão e de união da comunidade. As letras falam da realidade, do amor, da luta, do cotidiano das pessoas. Além disso, o pagode é sempre uma festa, um momento de alegria e confraternização. Então, ele acaba sendo um refúgio e uma fonte de força para as pessoas. Eu comecei a cantar por causa dele e levo isso comigo até hoje”, analisa a cantora. “Nos anos 90, ele sofreu preconceito porque era visto como música de periferia, então tinha um elitismo cultural envolvido. As pessoas associavam ele a algo inferior, mas na verdade era um movimento super-rico e autêntico”, reflete.
RAZÕES FINANCEIRAS
A pesquisadora Karina S. Trindade observa que, embora a questão financeira também esteja envolvida na decisão de artistas de outros gêneros lançarem projetos de pagode, em geral eles têm uma relação genuína e antiga com o ritmo. “A periferia é um quebra-cabeça de culturas variadas, estilos diferentes. Você cresce numa rua, o vizinho da frente está ouvindo Raul Seixas, você está ouvindo o seu ponto de macumba, seu vizinho da esquerda está ouvindo risca-faca, seu vizinho da direita está ouvindo música gospel, ou às vezes uma mesma casa você vai ouvir todos esses gêneros”, enumera ela.
A julgar pelos exemplos de mais destaque atualmente, ela está certa. A paulistana Gloria Groove, que lançou em maio o álbum “Serenata da GG” e, em julho, a turnê do trabalho, é filha de Gina Garcia, que foi vocalista do Raça Negra, um dos nomes pioneiros do pagode romântico. O soteropolitano Léo Santana, que em janeiro soltou o disco “PaGGodin” (a grafia faz referência ao apelido do artista, GG, em homenagem a seus dois metros de altura) e em agosto deu início à turnê do projeto, conta que sua relação com o gênero também veio da infância. “O ‘PaGGodin’ nasceu de um show do Léo garoto, que sempre foi um apaixonado pelo ritmo, que sempre foi fã de grandes artistas e referências no segmento, e que hoje são grandes amigos meus”, disse ele, emocionado, na estreia do show, no Rio de Janeiro.
Gloria Groove: disco recém-lançado dedicado ao gênero
Ludmilla, por sua vez, teve um padrasto integrante de um grupo de pagode, que ela sempre acompanhava. A primeira vez em que a artista subiu em um palco, com apenas oito anos, foi para cantar o gênero. “O pagode faz parte da história da minha família e sempre vai estar presente na minha vida”, conta a cantora. “Eu adoro ouvir e cantar pagode em casa, no carro, em todos os lugares (risos). É, sem dúvidas, o estilo musical que eu mais gosto de ouvir. Traz uma sensação de nostalgia e alegria, além de ser ótimo pra qualquer momento, seja para relaxar ou para animar uma festinha. Amo muito”, derrete-se.
Revelado na época no grupo Imaginasamba, em 2002, o cantor Suel, hoje em carreira solo (ele saiu da banda em 2005, retornando um ano depois, para sair definitivamente em 2016), é um que comemora a adesão de nomes associados a outros estilos ao pagode. “Hoje, o mercado está mais amplo, por conta dos artistas de outros gêneros que estão fazendo álbuns de pagode, levando o nosso som para outra galera. Isso é maravilhoso. Mas sempre vi o povo brasileiro muito receptivo quando se trata de pagode”, acredita Suel.
“Um exemplo que já deve ter acontecido em todas as casas do Brasil é quando está rolando um churrasco, um encontro de amigos, e alguém chega com um pandeiro e começa a batucar. Automaticamente, já se forma aquela roda, e todo mundo começa a cantar junto, quem não sabe bate palma ou enrola, vai no ‘lalaiá’. Quando vê, está todo mundo se abraçando e cantando pagode. É um gênero que une muitas pessoas”, exemplifica Suel.
E, apesar de ter tido seus altos e baixos na mídia, ele nunca perdeu seu posto nos corações das famílias dos subúrbios e periferias brasileiras em geral. “É um ritmo muito brasileiro, que representa muito o nosso povo, essa coisa da batucada, do pandeiro, do cavaquinho, a alegria que tem”, analisa Suel, cria de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “O pagode tem o poder de unir as pessoas. E é isso que está acontecendo, ele está trazendo cantores do pop, do sertanejo, do funk. É um gênero musical que consegue juntar tribos, isso é maravilhoso. Quem ganha com isso é o público, porque o pagode se enriquece com tantos artistas contribuindo com ele”, comemora. •