Os eventos dedicados ao instrumental crescem e se popularizam no país — mas ainda não são suficientes para atender ao segmento
por_Nathália Pandeló • do_Rio
por_Nathália Pandeló • do_Rio
O mercado de festivais de música no Brasil vive um momento de expansão, com grandes eventos tomando conta das capitais e de cidades do interior. O mesmo não pode ser dito dos festivais 100% dedicados à música instrumental, que encontram dificuldade em se manter, mesmo nos grandes centros. Artistas e produtores, no entanto, tentam mudar esse cenário.
Hamilton de Holanda: nome fundamental da cena instrumental contemporânea
O Brasil sempre foi um celeiro de grandes músicos. E o instrumental não é exceção. Bandas de músicos sem vocais passaram a fazer parte do repertório da nova geração da música brasileira, e o som alternativo de nomes como Macaco Bong, Bixiga 70, Hurtmold, Pata de Elefante, Camarones Orquestra Guitarrística, E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante e Mahmed começaram a figurar em listas de melhores álbuns de veículos da imprensa especializada.
Não foi o suficiente, porém, para quebrar a noção de que o instrumental é um nicho. Gêneros musicais mais ligados a esse universo, como o blues e o jazz, são mais difundidos. Alguns dos maiores eventos do país são nessa seara, como é o caso do Rio das Ostras Jazz e Blues Fest, na cidade fluminense; o Amazonas Green Jazz Festival, em Manaus; e o I Love Jazz, que tem um histórico sólido em Belo Horizonte. Outros saúdam um instrumento específico, como o Viola da Terra (SP), ou ostentam o orgulho das suas raízes – caso do BR 135 (MA). São eventos que se espalham por todas as regiões do país, seja por meio de leis de incentivo, com o patrocínio de grandes marcas ou usando ambos os modelos.
Um deles, o Porto Blue Sound, ocorreu entre julho e agosto passados, por três capitais e duas regiões brasileiras. Entre as atrações estava Hamilton de Holanda, figura incontornável quando o assunto é música instrumental. Apenas este ano, o músico carioca passou por países como Chile, EUA, Alemanha e Suíça, comprovando o quanto a música brasileira é benquista para além das nossas fronteiras. A experiência de Hamilton aponta para uma transformação positiva nesse setor, porém sem negar que ainda falta muito investimento.
“Ao longo dos anos, tenho observado uma transformação significativa no cenário dos festivais de música instrumental. O público tem se tornado mais diversificado, tanto em termos de faixa etária quanto de preferências culturais, o que reflete um crescente interesse pela música instrumental como uma forma de expressão universal e não apenas de nicho”, diz à UBC. “Quanto à infraestrutura, tem havido um avanço, com muitos eventos se preocupando em oferecer melhores condições técnicas e de conforto para os artistas e para o público, embora ainda existam desafios, especialmente em regiões onde o apoio governamental e privado é mais escasso.”
Arthur Verocai: mestre que virou moda na Europa e nos EUA
INICIATIVAS EM PERIGO
Esse cenário pode levar ao desaparecimento de várias iniciativas, desde as mais independentes àquelas bancadas por grandes marcas. Eventos como Produto Instrumental Bruto (SP), Goyaz Festival (GO), Festival de Música Instrumental da Bahia (BA), Aurora Instrumental (PE), Festival Porto Alegrense de Bandas Instrumentais (RS) e o Festival de Música Instrumental Para Viola, Violão e Guitarra (SP) estão entre alguns dos mapeados pela UBC com edições intermitentes. Nem mesmo um evento do porte do BMW Jazz Festival, realizado pela montadora de carros, viveu para contar a história – apesar de ter trazido ao Brasil nomes como Wayne Shorter e Joshua Redman há mais de uma década.
Uma das atrações do finado evento da BMW, porém, segue na ativa. É a Orkestra Rumpilezz, à época comandada pelo agora saudoso Letieres Leite. O grupo carrega adiante o legado de seu mestre, com uma apresentação agendada no Coala Festival, em São Paulo. Embora não se trate de um evento voltado para a música instrumental, o Coala faz de seu novo Palco Tim uma oportunidade de ecoar uma prática que vem se estabelecendo em outros eventos de música popular: a combinação de atrações instrumentais com vocais convidados. A Rumpilezz receberá Luedji Luna em algumas canções, enquanto Verocai e sua orquestra serão acompanhados por Mano Brown em uma parte do show.
O movimento é visto com naturalidade dentro de um dos principais eventos do calendário musical de São Paulo. “O Coala é um festival que não se restringe a gêneros específicos. A nossa curadoria sempre foi focada em música boa, independente do estilo, e o nosso público também consome música assim. São pessoas que realmente gostam de música e sabem apreciar o melhor de cada gênero. Trazer a música instrumental para o festival é agregar mais uma camada de experiência para esse público que é aberto a música e sabe apreciá-la”, aponta Gabriel Andrade, sócio-fundador e curador do Coala Festival. “Essa é a segunda vez que a Rumpilezz se apresenta no Coala e, por mais que pareça também distante, o público do rap conhece muito bem Arthur Verocai devido à cultura do sample que fez o maestro virar moda nos EUA e na Europa”, complementa.
CAMINHO PASSA POR OUTROS GÊNEROS
Este parece ser um dos caminhos para levar o instrumental ao grande público, cuja experiência com artistas e grupos instrumentais pode ser pouca ou nula. Hamilton de Holanda vê na aproximação com diferentes gêneros musicais uma das possibilidades para conquistar novos ouvintes. Esse movimento pode não ser bem visto em escolas tradicionais, como o jazz e o choro, o que gera uma curiosa distinção entre os artistas da atual geração, mais dispostos a experimentar. A inventividade de novos nomes, como Domi and JD Beck, Kamasi Washington e Yussef Dayes, lhes garantiu status de novidade imperdível em line-ups de festivais como C6 ou trazendo suas próprias turnês ao país.
“Vejo que o caminho para a integração mais ampla da música instrumental nas agendas culturais passa por um diálogo mais próximo com outras formas de expressão artística e com a cultura popular em geral. É fundamental criar pontes com o cinema, a dança, mesmo com a canção, onde o instrumental possa também ser um elemento central, como já é de acompanhamento”, diz Hamilton de Holanda.
Holanda enumera ainda outras ideias para fortalecer a cena instrumental:
“A educação musical tem um papel crucial nesse processo, incentivando o contato com a música instrumental desde a infância. Filmes e documentários que tenham foco na música instrumental também ajudam a criar espaço no dia a dia das pessoas. Por fim, acredito na importância de iniciativas que tragam a música instrumental para lugares onde o público já está, como praças, escolas e mídias digitais, tornando-a mais acessível e parte do cotidiano das pessoas.”
Esse trabalho de expor o público ao instrumental deve acontecer através de um fomento sistemático e planejado. No Rio de Janeiro, um pequeno espaço no bairro de Botafogo vem fazendo isso há anos, já somando duas edições de seu próprio festival instrumental. A programação da Audio Rebel é repleta de atrações sem vocal ao longo do ano todo, sem depender exclusivamente de um evento específico voltado a esse propósito. Como resultado, os frequentadores da casa já são versados nesse universo e abraçam atrações que vão do jazz mais tradicional ao experimental mais vanguardista. Eles, é claro, batem cartão no Festival Audio Rebel Instrumental, cuja segunda edição termina agora em 25 de setembro.
O festival instrumental da Audio Rebel realiza estes dias sua segunda edição — quatro anos depois da primeira —, com 7 atrações e 4 masterclasses. A escalação prezou pela pluralidade de linguagens, unindo do jazz tradicional e moderno à MPB vanguardista. A ideia do festival veio da possibilidade de desenvolver um projeto que vencesse um edital de patrocínio, usando a expertise da Rebel para garantir a sustentabilidade da casa. Nesse sentido, o aporte do evento instrumental se tornou um dos motores desse palco da resistência underground carioca.
Para Pedro Azevedo, proprietário da casa há mais de 15 anos, incentivar a cena retroalimenta todo o ecossistema, envolvendo mais o público e formando novos artistas. “Acho que a cena instrumental, assim como a autoral e a independente, vai se fortalecer com mais casas espalhadas pelas cidades, com mais espaços de música ativos e com programação regular. Assim temos real formação de público. Projetos incentivados e editais são fundamentais também, pois certos shows só acontecem com esse aporte financeiro. Ter artistas de primeira grandeza é fundamental para gerar mais interesse do público”, pontua.
Um dos papéis fundamentais dos festivais de música instrumental tem sido o de formação de público no sentido literal da palavra: transformando entusiastas em estudiosos do assunto através de aulas, pagas ou gratuitas. Não raro, estes eventos fomentam também debates e rodadas de negócios que mantêm as engrenagens girando em um mercado já carente de oportunidades no contexto pós-pandêmico.
INICIATIVAS EM PERIGO
É bem verdade que o setor de eventos musicais ao vivo passa por um aquecimento este ano, com o site Mapa dos Festivais elencando nada menos que 146 festivais sendo realizados apenas no primeiro semestre, um crescimento de 18% em relação ao mesmo período do ano passado. O número projetado para 2024 é de 324, mesmo com 10 festivais cancelados e outros 7 adiados. De todos os eventos registrados neste que é um dos maiores banco de dados do setor no país, apenas um é totalmente instrumental: o Festival Sonido, que acontece em Belém do Pará.
O 14-Bis no estúdio Sonastério, em Minas
O Mapa dos Festivais é um site que centraliza informações sobre eventos de música realizados em todo o país, oferecendo uma plataforma completa para os amantes de música e profissionais do setor. Ele reúne dados sobre os festivais, incluindo datas, locais, line-ups, e informações de ingressos, além de conteúdos como notícias, análises e entrevistas relacionadas a este universo. A plataforma também serve como uma ferramenta de consulta para planejadores, produtores e artistas, facilitando a descoberta e o acompanhamento dos principais festivais em todo o país.
A cada seis meses, o Mapa publica um panorama onde reporta os ganhos e perdas da área, colocando uma lupa sobre gêneros musicais, regiões do país, preços de ingressos e até artistas que mais batem cartão como atração destes eventos.
Essa constatação mostra a urgência de um conhecimento mais aprofundado do cenário instrumental brasileiro, o mesmo que já acumula gramofones do Grammy Latino e integra line-ups de eventos mundo afora. Os primeiros passos já foram dados, com iniciativas que ajudam a mapear a cena, leis de incentivo e convites de festivais como o Rock in Rio e o The Town, onde nomes como Hermeto Pascoal e o próprio Hamilton de Holanda são presenças de destaque. Tudo começa na contratação — e, como comprova o Coala Festival, os ouvidos estão mais do que abertos.
“As curadorias também têm o papel de educar o público. A questão principal é entender quais atrações cabem nas programações e também o perfil de público que aquele festival atrai. O processo de apreciar a música instrumental pode ser longo para pessoas que não estão habituadas, então geralmente é melhor começar por coisas mais palatáveis e gradualmente apresentar coisas mais complexas; uma pessoa que vê um show instrumental pela primeira vez e consegue se divertir, com certeza vai ter uma abertura maior para outros”, conclui Gabriel Andrade •
Festivais onde o instrumental brilha:
Descubra alguns dos principais eventos em todo o país onde o instrumental é protagonista ou ganha destaque:
Festivais que já não acontecem há um tempo:
Alguns eventos conseguiram se estabelecer nos calendários regionais, mas lutam para conseguir renovar a programação a cada ciclo. Conheça alguns deles:
Produto Instrumental Bruto (SP)
Goyaz Festival (GO)
Festival De Música Instrumental Da Bahia (BA)
Festival Aurora Instrumental (PE)
Festival Porto Alegrense de Bandas Instrumentais (RS)
Festival de Música Instrumental para Viola, Violão e Guitarra (SP)